sexta-feira, 7 de maio de 2010

Ciencia x Fé

Ciência x fé

A Gênesis na sala de aula

Ensino religioso confessional causa polêmica no Rio de Janeiro e desperta antiga discussão entre criacionistas e evolucionistas

O sistema público de educação do Estado do Rio de Janeiro está no meio de um debate que envolve fé religiosa, direito à informação e uma boa dose de preconceito. No centro de tudo, arde a já centenária polêmica que coloca em trincheiras opostas evolucionistas – aqueles que defendem as teses enunciadas no século 19 pelo naturalista britânico Charles Darwin sobre a origem e a evolução de todos os seres vivos – e criacionistas, para os quais tudo o que existe, inclusive o homem, é obra das mãos de Deus. E a maior protagonista do imbróglio é a governadora do Rio, Rosinha Matheus, uma crente presbiteriana que não abre mão de confessar sua fé. Desde março deste ano, ela e os responsáveis pela área de educação vêm sendo fustigados por setores científicos e intelectuais, que denunciam uma suposta mistura entre religião e e educação pública. Há até quem diga que a intenção das autoridades fluminenses seria uma espécie de aparelhamento evangélico do Estado.
Em 2003, a Secretaria Estadual de Educação (SEE) abriu concurso público para a contratação de professores de educação religiosa. Até aí, nada demais – o ensino religioso, previsto na Constituição Federal e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, é totalmente legal e reconhecido no país. O Ministério da Educação apenas recomenda o caráter ecumênico, ou seja, que as aulas versem sobre aspectos genéricos da espiritualidade, abrangendo preceitos éticos e humanitários presentes em todas as religiões como a solidariedade, o respeito ao próximo e a honestidade. Acontece que o Estado do Rio inovou em um quesito: resolveu instituir a educação confessional, dividindo as classes de ensino fundamental e médio de acordo com a orientação religiosa de cada aluno. Entre os professores aprovados, 500 já estão em exercício. Destes, 342 são católicos, 132 evangélicos e os demais são adeptos do espiritismo e da Igreja Messiânica.
Segundo a SEE, a divisão por credos foi feita com base numa pesquisa. Se já havia resistências à orientação confessional do ensino religioso, a coisa ferveu mesmo quando circulou a notícia de que as aulas defenderiam o criacionismo. Colaborou para isso uma entrevista de Rosinha, na qual ela disse que, pessoalmente, não acredita no evolucionismo – diga-se de passagem, um direito seu. Mas foi o que bastou para ter início o tiroteio. “O ensino da criação é propaganda enganosa”, criticou o professor Ennio Candotti, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). “A teoria criacionista não se sustenta cientificamente, ao contrário do evolucionismo”. No entender de Ennio, o que está em jogo é um projeto político que visa o favorecimento da fé sobre a ciência. Opinião semelhante tem o professor de biologia Carlos Henrique Antunes, que embora atue na rede estadual, é contrário à medida. “Cada coisa deve ser mantida na sua própria esfera. Tenho o maior respeito pela religião e pelo direito de cada um crer no que quiser. Mas levar a fé para a sala de aula é um equívoco”, critica.

“Proselitismo, não” – A lei que criou o ensino religioso confessional no Estado do Rio foi proposta pelo deputado estadual Carlos Dias (PMDB), que é evangélico. Sancionado pelo então governador Anthony Garotinho – marido de Rosinha e também presbiteriano – em 2002, o projeto foi muito criticado por entidades científicas, que consideram o ensino confessional um retrocesso. A questão extrapolou o universo acadêmico para resvalar no preconceito religioso, fazendo lembrar episódio recente ocorrido na França. Lá, valores como liberdade de consciência e laicidade do Estado foram colocadas em cheque por uma lei restritiva do governo, que proibiu o uso de símbolos religiosos em sala de aula. A medida, nitidamente casuística, atinge em cheio a comunidade islâmica, já que as meninas muçulmanas são as mais rigorosas em relação a costumes como o uso do véu.
Apesar da oposição, a proposta seguiu adiante no Rio. Em outubro de 2003, a Assembléia Legislativa (Alerj) deu um golpe no ensino confessional, aprovando regulamento que determinava o caráter inter-religioso da matéria. A governadora vetou e convocou o concurso. Em março deste ano, o Executivo acionou sua base parlamentar na Alerj e o veto foi mantido – na prática, isso significou a manutenção da proposta original, aquela que previa critérios confessionais nas aulas. Líderes religiosos, como o cardeal-arcebispo do Rio, D.Eusébio Scheidt, e grupos evangélicos comemoraram a conquista. No mesmo mês, os professores começaram a trabalhar. Para uma jornada semanal de 16 horas – 12 delas em sala de aula –, o salário inicial gira em torno de R$ 500.
O ensino da tese da criação divina de fato está presente no currículo, que neste ano tem como tema “Fraternidade e água”. Mas de acordo com a professora Ediléia da Silva Santos, coordenadora de Ensino Religioso da Secretaria Estadual de Educação, não haverá nenhum contraponto entre as duas correntes: “O que está sendo dito por aí não condiz com a verdade. Todas as escolas continuarão ensinando a ciência convencional. As aulas de religião apenas vão pincelar diversos assuntos, no sentido de alargar o conhecimento dos alunos”, garantiu, em entrevista a ECLÉSIA. Segundo ela, não existe qualquer intenção de influir na religiosidade dos estudantes ou induzi-los a mudar de credo. “A orientação religiosa do menor cabe à família. Os professores não vão praticar qualquer tipo de proselitismo. Seria absurdo se isso acontecesse”.
A educadora lembra que o ensino religioso nas escolas da rede pública do Rio já existe desde 1969, mas vinha sendo continuamente esvaziado. “Na prática, ele já nem existia mais”. Cabia a professores de disciplinas convencionais, como matemática e português, acumular as funções de docentes religiosos. Mas como havia déficit de profissionais, as aulas de religião foram deixadas de lado. Para Ediléia, a decisão do governo estadual de fortalecer a educação religiosa é um avanço. “O Estado do Rio está sendo considerado modelo. Temos recebido profissionais de outros estados interessados em conhecer o que vem sendo feito aqui”. A coordenadora explica que os professores de educação religiosa são classificados como de “nível 1”, ou seja, necessitam ter curso superior e licenciatura em educação.
Além disso, todos eles apresentaram, no ato da admissão, carta de reconhecimento da respectiva autoridade religiosa. No caso dos docentes evangélicos, o documento é fornecido pela Ordem dos Ministros Evangélicos do Brasil (Omeb), entidade com sede no Rio e presidida pelo pastor presbiteriano Isaías de Souza Maciel. A Omeb teve sua competência para este fim reconhecida pela SEE. “Há muitos padres e pastores entre os professores”, acrescenta Ediléia. “São pessoas que enxergaram uma oportunidade de ampliar sua atuação ministerial e profissional, já que a docência pode ser perfeitamente compatibilizada com outras atividades”.

Ciência X religião – Católica praticante, Ediléia freqüenta a missa e é ministra da eucaristia, uma espécie de auxiliar do sacerdote. Exerce ainda diversas atividades comunitárias no âmbito de sua paróquia. Por isso mesmo, não deixa de enxergar o aspecto espiritual de todo o processo: “Creio que foi o Espírito Santo que abriu esta porta para nossas crianças e jovens”. Uma de suas atividades é percorrer os núcleos de educação que coordenam as quase 2 mil escolas de todo o Estado, acompanhando o trabalho dos professores. “O que noto é que os alunos estão muito satisfeitos em participar. Aqueles que não têm uma confissão definida, ou praticam credo diverso das aulas oferecidas, podem escolher qual desejam assistir”. Geralmente, a opção é pelo catolicismo, religião majoritária no país. Ainda de acordo com a educadora, a SEE estuda a inclusão de outros credos na grade curricular, mas até agora os levantamentos apontam poucos estudantes seguidores de ritos como o judaísmo, a umbanda e o islamismo, por exemplo.
O que está em jogo, pelo que se vê, é definir se o ensino da criação é legítimo fora da estrita esfera da religião. As opiniões se dividem, e até criacionistas de carteirinha têm opinião ponderada. O professor Ruy Vieira, livre-docente em física e presidente da Sociedade Criacionista Brasileira, defende que o criacionismo deveria ser analisado simultaneamente com o evolucionismo. “O ideal seria uma comparação acadêmica entre os fundamentos de ambos, para daí as pessoas poderem se decidir sobre uma ou outra postura”. Mas ele está preocupado, por outro lado, com o que vem sendo implementado no Rio. “Como a própria imprensa tem mencionado, as crianças vão ver componentes científicos nas aulas de religião. Já em ciências, o que aprenderão não tem nada a ver com as versões religiosas. Isso pode gerar mais confusão do que benefícios”. Além disso, diz Vieira, há necessidade de professores capacitados para expor as teses criacionistas. “Deve-se partir da produção de material didático para a formação de professores e alunos. Enquanto não houver equipes de docentes bem informados para ensinar o criacionismo em conexão com o ponto-de-vista evolucionista, qualquer tentativa vai ser frustrada”, avalia.
Na verdade, se a discussão ainda está começando no Brasil, em países desenvolvidos o criacionismo já é levado bem mais a sério. Caso dos Estados Unidos e da Austrália, onde os dois modelos são ensinados nas escolas – mesmo assim, com nítido destaque para o conteúdo com base nas teses de Darwin. Segundo o escritor e conferencista americano Duane Gish, Ph.D em bioquímica, dirigente do Institute for Criation Research (Instituto de Pesquisas da Criação), isso acontece porque os evolucionistas controlam o sistema educacional. “No entanto, jamais se encontraram as evidências científicas necessárias à comprovação da tese da evolução”, ressalta. Respeitado no meio acadêmico internacional, o pesquisador é membro da Igreja Batista de San Diego, na Califórnia. E cético quanto ao evolucionismo. “Não há, no registro fóssil, as formas de transição entre as diferentes espécies, o que seria fundamental para comprovar que umas evoluíram das outras”.
“Creio que o ideal seria conhecer as duas cosmovisões – a evolução e a criação – sobre o estudo da natureza”, opina, por sua vez, Nahor Neves Júnior, doutor em geologia e professor de ciência e religião da Universidade de São Paulo (USP). “Dizer que o evolucionismo é sinônimo de ciência e que ele exclui a religião é uma tremenda falta de conhecimento”, continua. “Na realidade, a ciência que nós conhecemos hoje é fruto da associação entre os pensamentos científico e bíblico”. Autor do livro Breve história da Terra, Nahor cita que grandes cientistas do passado, como Nicolau Copérnico, Isaac Newton e Blaise Pascal, que estabeleceram as bases da ciência moderna, não descartavam o elemento religioso. “Eles estudavam a natureza como uma dádiva de Deus, aprendendo como ele age e vendo sua mão nas manifestações e fenômenos naturais. Dissociar a ciência da religião só trará prejuízos à ciência”, sentencia.

Homem e macaco – Sob o ponto de vista religioso – ou seja, o de fornecer ao estudante elementos para compreender melhor sua própria fé à luz da ciência –, Nahor lembra ainda que o evolucionismo tem em seu modelo convencional o ateísmo: “Assim, aprendendo somente o que diz a tese de evolução, não haveria espaço para a criança imaginar ou compreender um Deus criador e mantenedor”. A professora Eliana Regina Gava, adventista, que leciona biologia no Colégio Unasp, em Engenheiro Coelho (SP), vai além. Como a instituição em que trabalha é confessional, a maioria dos alunos, composta por filhos de famílias adventistas, já vêm para a sala de aula com arraigados conceitos criacionistas. “Nas séries iniciais, é ensinado o criacionismo. Por volta da terceira série já se entra no assunto da evolução, porque o aluno geralmente pergunta como é aquela história de que a gente veio do macaco”.
De acordo com a educadora, é a partir desse estágio de aprendizado que a criança começa a montar seus próprios parâmetros. “Se o ensino simultâneo for bem dosado, ele traz benefícios”, acredita. “O primeiro é o do livre-arbítrio – o aluno pode escolher em quê vai acreditar. O segundo é a questão de moralidade, espiritualidade e relacionamentos”. Nas suas classes, Eliana ensina que as duas abordagens são filosóficas. “Afinal, nenhuma delas pode ser provada cientificamente. Deixo isso claro e digo que pensem e tirem suas conclusões”. Eliana é uma entusiasta do ensino religioso. “Nós ensinamos que os alunos têm um Deus criador, redentor e salvador. Eles aprendem que vieram de alguém que é superior e passam a enxergar que a vida e o futuro não são tão difíceis assim, pois podem confiar em Deus. Isso ajuda tanto a parte pessoal como a ética”, conclui.
Para o doutor em bioquímica Márcio Barros Dutra, pró-reitor da Universidade Universo, em Niterói (RJ), a discussão sobre a validade de se ensinar o criacionismo em sala de aula não faz sentido: “Trata-se apenas de mais um ramo do conhecimento. É uma iniciativa válida”. Segundo ele, a ciência tem se aproximado muito da religião nos últimos tempos. “A Idade Média é que promoveu essa dicotomia entre fé e razão. Mas elas não são excludentes”. Crente batista, Márcio garante que, durante sua formação profissional, jamais enfrentou conflitos entre o que crê e os postulados da ciência – e, mesmo quando encontrava algum paradoxo, isso apenas o estimulava a estudar mais. “Por que ensinar apenas o darwinismo, fornecendo uma informação parcial para o aluno? Na busca do saber, devemos considerar todos os princípios”. O estudioso lembra que o próprio Charles Darwin, no fim de sua vida, admitiu que suas pesquisas não lhe forneceram todas as respostas que procurava. “Não existe conhecimento absoluto, definitivo”, lembra.

(Carlos Fernandes
é Editor e Redator da revista Eclésia)


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post by:Janio Ires.


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